quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A primeira vez que virei bicho

São muitos os caminhos que se podem percorrer na trajetória de ser mulher: coisa que não se nasce sabendo, aliás. Há caminhos e caminhos e eles podem ser trilhados de maneira superficial como quase tudo nesta vida: ou não. Outros caminhos – os mais difíceis e apaixonantes, talvez – são labirínticos e eles dependem da disposição em ir o mais longe possível em si mesma: impossível chegar sozinha às fronteiras mais desconhecidas e inexploradas do próprio corpo. Labirinto de perder a si mesma e também de encontrar o outro: alguém disposto a percorrer estes abismos todos. E foi assim que eu entreguei os pontos e deixei-me despetalar: servi-me de corpo e servi-me de alma de um jeito inédito. Numa esquina de mim mesma, dissolvi-me, liquefiz-me e, pela primeira vez na vida, virei bicho (que bicho é esse?) para depois, só depois, coração desacelerando, vir retornando à forma humana original que, de alguma forma, nunca mais será a mesma. E talvez nem tão importante.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Vida súbita

Ela hoje acordou subitamente
desamparada
Sentiu em cada terminação nervosa
a angústia de estar viva
Acordou-se e deu-se conta
o que seria dali por diante?
Essa vida toda que explode nela
e a deixa em carne viva –
exposta –
vai acabar matando.
Que seja aos poucos então.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Futuro do Pretérito

Eu amanheceria com você muitas outras vezes porque teria certeza de que a vida seria mais delicada pelo simples fato de você estar ali. Todas as coisas corriqueiras seriam ainda mais especiais – mesmo que não fossem. Ensolarar-me-ia pela manhã só para você por todas as manhãs que você permitisse.

Também engravidaria, sem medo e com uma emoção incomensurável, numa manhã de Sol. E amanheceria uma mulher muito maior do que todas as outras do planeta já que, afinal de contas, particularmente em mim se faria o processo mais que perfeito de uma existência: a vida. Você teria, afinal, o melhor de mim porque certas coisas minhas são naturalmente suas, sabe-se lá Deus por que. E eu não sei exatamente o que fazer com isso, a não ser tentar aceitar.

Eu também entardeceria com você e deixaria o Sol se pôr em mim à vontade, porque a poesia da vida estaria mais, muito mais, óbvia. Largada solta, leve e, o que é melhor, despretensiosa, em um diálogo qualquer de fim-de-tarde. Comigo mesma ou com você. Ou ao mesmo tempo com os dois. (Me entendo tão mais quando converso com você – sei, de repente, não apenas o que sou como também o que seria capaz de ser)

E seria fatalmente poesia correndo solta nas veias, destravada, deslavada, desvairada e madura - já que teria alguém para respirá-la junto comigo a cada batida de coração. Às vezes, é tão penoso o esforço de ter que explicá-la para alguém (de quem cobramos, sem querer e com uma quase covardia, todo o entendimento) que é melhor deixá-la menos evidente, menos latente, menos inteira. Calá-la um pouco para viver melhor. Ou, melhor, conviver. (Entardeceria impregnada de luz e de poesia e seria uma mulher muito mais forte também porque, afinal de contas, não gastaria a energia que preciso gastar habitualmente para me fazer entender.)

Entardeceria cheia de amor por todas as coisas vivas, visíveis ou não, porque a vida é, afinal, tudo de bom e excitante em todo o seu incomensurável mistério.

Eu anoiteceria com você de novo e sempre e faria da noite minha cúmplice desordenada de ser, aqui e ali e diariamente, uma outra mulher qualquer, nunca experimentada, inventada e reinventada tantas vezes quantas fossem desejadas por você. Mudanças inspiradas, por exemplo, pelas fases da Lua ou em qualquer outra desculpa simplesmente pelo fato de colocar-me exposta para decifrar. Sentir-me-ia devorada e desvendada e isso, sim, é o melhor que uma mulher pode querer da vida. Seria uma mulher daquelas que aprendem definitivamente a pular do abismo e a sair voando por si mesmas pela simples poética de serem feitas de substantivo feminino.

Da madrugada traria, talvez, o meu momento mais humano e menos feminino... A tentativa em nada obscena de deixar à tona um ser humano quieto, calmo e sereno, pelo menos de vez em quando, pela simples dádiva de ser inteiro. Para isso, seria, claro, necessário e imprescindível aprender o equilíbrio, domando, com razão e sensibilidade, intensidades e outras coisas também, para fazer nascer, finalmente, somente e simplesmente, um ser humano inteiro.

(Ressuscitaria muitos tigres que morreram dentro de mim, para, então, libertá-los. Inclusive de mim.)

Presente do Indicativo

Eu quero você e ponto. É isso o que eu sei.
Mas descubro, tentando entender com serenidade, que a vida é, também, a arte do desencontro.

(Escrito há alguns anos, para uma pessoa para sempre.)

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Múltipla-escolha

Ela o abraçou como se você fosse dela.
Por quê?

( ) Ela se sentiu à vontade como se o conhecesse há muito tempo.
( ) Ela se sentiu atraída embora não tivesse se dado conta.
( ) Por nada. Ela é assim mesmo com todo mundo.
( ) Ela estava bêbada.
( ) Você contou um história bonitinha e ela se emocionou.
( ) Ela nem tinha se dado conta de que você estaria nesse encontro e quando o viu
pensou: MEU DEUS, QUEM É ESSE? Ficou surpresa com você na verdade.
( ) Você a tocou várias vezes antes e pronto: ela se derreteu.
( ) Foi espontâneo: como um “pressentimento” infantil de que você faria parte da vida
dela.
( ) Na verdade, ela estava com uma louca vontade de beijar você mas não podia.
Então só se aproximou o máááááááááximo permitido num encontro como aquele.
( ) Aff... Óbvio: ela estava esperando você faz tempo e não sabia.
( ) Todas as respostas anteriores e mais outras tantas que ela poderia escrever.
( ) Ela sabe ou pensa que sabe e não quer dizer.
( ) Nenhuma das respostas anteriores: é inexplicável! Vocês nunca vão saber.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Incorporada

Ah, Gabriel, mas então agora acho que vou evitar falar com você. Não falar parece que mantém a coisa num nível mais platônico: afasta-se um pouco (muito pouco, mas já é uma ajuda) da fogueira. (E eu já me queimei tantoooo nessa fogueira: o fogo vem dos corpos tomados ou das entranhas?) Ouvir a voz já é mais difícil: querer estar junto e não poder, querer estar em cima e não poder, querer estar embaixo e não poder, querer estar dentro e não poder, querer estar do avesso e não poder, querer estar nas veias e não poder, querer estar misturado e não poder. Ainda mais numa tarde tão convidativa, um pouco de sol entrando pelas frestas da janela e você entrando pelas frestas de mim. Daí fico pensando: como seria? Como seria?
Acho que seria assim – um pouco como eu estou hoje: um possuir e pertencer emocionado, denso, dolorido e profundo. No começo iria pedir lentidão e intensidade (isso é possível?) para poder guardar para sempre cada milímetro de nós dois em comum: cada textura, cada tremor, cada respiração, cada palavra dita sem dizer. Talvez depois pedisse que você, por alguns segundos, ficasse sem se mexer: me olhando nos olhos. Depois me entregaria a você de bandeja: doada. Pra você fazer o que quisesse de mim: ora me partindo em pedaços, ora me vertendo nunca antes tão inteira. Mas, afinal, por que demorou tanto tempo pra eu estar tão toda num outro que não eu mesma?

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A paixão e o precipício

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! Na minha teoria, o ser humano (especialmente o do sexo feminino) nasce com um chip implantado que acende "Perigo, perigo!" toda vez que ele está na iminência de se apaixonar: um anjinho, na verdade, que sussurra regras lindas, sensatas, inteligentes, práticas e, o que é pior, fáceis ao ouvido do seu protegido. Faça isso, não faça aquilo, não ouça isso, delete aquilo, não pense nisso, evite aquilo outro, enfim. Um monte de dicas: dependendo da dificuldade da pessoa - e da sua intensidade - quase um livro, um Manual Prático de Sobrevivência. Absolutamente perfeito, pedindo para não ser seguido porque logo em seguida vem também o diabinho, do outro lado, grudando lascivamente na orelha do pobre coitado, num ato deliberado de covardia, dizendo: "Nada disso. Vai, se joga, se arremessa da ponte, se arrebenta sem dó nem piedade nas pedras... Pular no precipício é tudo de bom. Quando você está caindo, o vento na pele, a liberdade, a gravidade, a altura (quanto mais do alto, melhor): você vai ver, é tããããão gostoso. Vai até pensar que está voaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaando."
(E geralmente a história termina com o anjinho, desesperado, lá de cima do precipício, querendo gritar a frase proibida "EU AVISEI". Vida de anjinho é sofrida, viu? Mas ele não sabe que, ao mesmo tempo que o botão de "Perigo" acende, outras coisas acendem também. E com muito mais força.)

Samara Sieber

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

(...)
Esse assunto de morrer lhe foi recorrente por toda a vida. Respira. Deixa o ar inundar todas as suas células. Lembra-se da angústia que sentiu quando viu a morte pela primeira vez: era morte de bicho, talvez um começo mais sutil na sua carreira de perdas. Viu seu cachorro ser atropelado e chorou sem entender uma noite inteira. A mãe dizia para o pai: não se preocupe, amanhã ela esquece. Mas o pai sabia que nela as dores doíam diferentes. E se preocupava imensamente, mas não sabia nem como falar com a esposa sobre isso. E tentava sempre quando já lutava contra o sono se convencer de que a vida encarregar-se-ia de fazer o melhor por sua filha. Ele apostava na vida para embalar Beatriz no colo. Que essa fosse maior e mais forte do que todos os fracassos. Que essa fosse maior e mais forte do que todos os desamores. Que essa fosse maior e mais forte do que a morte. Ele temia por Beatriz. Mas tinha também esperança. Enquanto a mãe já havia descartado qualquer possibilidade de sofrimento em Beatriz pela morte do animal de estimação, a menina prendia o ar antes de dormir e ficava querendo saber como seria não ouvir mais nada. Ficava procurando em si sensações de morte. Não a dor de perder alguém. O encontro com morrer. Chegou a colocar algodões nos ouvidos e a vendar os olhos com um lenço preto da mãe. Depois ela rezava: não queria que o pai morresse, não queria que a mãe morresse, não queria que o irmão morresse. Aí no seu pai nosso que estais no céu entravam todas as pessoas que Beatriz amava mesmo sem saber exatamente o que era amor. Beatriz amava muito. Amava, amava, amava, amava.
É fácil, Beatriz. Agora é de vida que você vai se encher. Respira, respira, respira. E abra os olhos. Não vai doer. Não mais do que todas as outras coisas. Mas você precisa abrir os olhos, fazer alguma coisa. Quantas horas mais vai ficar morrida aí neste corpo?

(Samara Sieber)