quinta-feira, 9 de outubro de 2008

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Esse assunto de morrer lhe foi recorrente por toda a vida. Respira. Deixa o ar inundar todas as suas células. Lembra-se da angústia que sentiu quando viu a morte pela primeira vez: era morte de bicho, talvez um começo mais sutil na sua carreira de perdas. Viu seu cachorro ser atropelado e chorou sem entender uma noite inteira. A mãe dizia para o pai: não se preocupe, amanhã ela esquece. Mas o pai sabia que nela as dores doíam diferentes. E se preocupava imensamente, mas não sabia nem como falar com a esposa sobre isso. E tentava sempre quando já lutava contra o sono se convencer de que a vida encarregar-se-ia de fazer o melhor por sua filha. Ele apostava na vida para embalar Beatriz no colo. Que essa fosse maior e mais forte do que todos os fracassos. Que essa fosse maior e mais forte do que todos os desamores. Que essa fosse maior e mais forte do que a morte. Ele temia por Beatriz. Mas tinha também esperança. Enquanto a mãe já havia descartado qualquer possibilidade de sofrimento em Beatriz pela morte do animal de estimação, a menina prendia o ar antes de dormir e ficava querendo saber como seria não ouvir mais nada. Ficava procurando em si sensações de morte. Não a dor de perder alguém. O encontro com morrer. Chegou a colocar algodões nos ouvidos e a vendar os olhos com um lenço preto da mãe. Depois ela rezava: não queria que o pai morresse, não queria que a mãe morresse, não queria que o irmão morresse. Aí no seu pai nosso que estais no céu entravam todas as pessoas que Beatriz amava mesmo sem saber exatamente o que era amor. Beatriz amava muito. Amava, amava, amava, amava.
É fácil, Beatriz. Agora é de vida que você vai se encher. Respira, respira, respira. E abra os olhos. Não vai doer. Não mais do que todas as outras coisas. Mas você precisa abrir os olhos, fazer alguma coisa. Quantas horas mais vai ficar morrida aí neste corpo?

(Samara Sieber)

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